1 – Razão de Ser da Concordata
- Terá ainda razão de ser a Concordata? O problema tem sido levantado ultimamente. Que significa hoje a Concordata? Pode já tirar-se uma conclusão dos trinta anos de experiência?
- A razão de ser da Concordata, declara-o abertamente o Prólogo que anuncia o texto, a saber: «regular por mútuo acordo e de modo estável a situação jurídica da Igreja Católica em Portugal, para a paz e maior bem da Igreja e do Estado». É dos documentos que assinalam datas históricas de um povo.
Diga-se sem temer: estabeleceu a paz religiosa em Portugal. Respeitada a Concordata «com sinceridade e boa-fé», «não pode pôr-se entre nós, como dizia Salazar ao apresentá-la na Assembleia Nacional, o problema de qualquer incompatibilidade entre a política da Nação e a liberdade evangelizadora» da Igreja. Nem estatismo invasor, pró ou contra, na esfera da Igreja, nem clericalismo a pretender tutelar a esfera do Estado.
Quando da sua assinatura, tive ocasião de declarar: - a Concordata liquida dois séculos ou mais do que se poderia chamar a política religiosa; mas salva deles o princípio que os fez viver, ou, como já foi dito, «toda a essência da nossa tradição espiritual». – Do regime regalista a Concordata conserva o que os Estados modernos conservam e muitos protegem – o reconhecimento da missão educadora da Igreja, a garantia dos seus direitos e liberdade, a concórdia dos dois poderes para o bem comum. «Da revolução das ideias que levou à separação da Igreja e do Estado, conserva o que nela se poderá achar-se como aspiração legítima: a independência das respetivas esferas de influência, o respeito da liberdade de consciência de cada um, a igualdade de todos os portugueses perante a lei».
Salazar regozijava-se, no citado discurso, de ter sido possível encontrar «uma fórmula de respeito e colaboração entre um Estado moderno equilibrado e a Igreja Católica».
Foi para durar - «de um modo estável», acentua-se no Prólogo - que ela foi feita. Nem de outra forma se explicariam os grandes sacrifícios que a Igreja ofereceu a bem da sua liberdade e da concórdia com o Estado.
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2 – A Concordata Hoje
- Não falta quem pense que a Concordata foi fruto das circunstâncias do tempo; mas este evolucionou e novas condições aconselhariam uma revisão do documento. Não deu o exemplo e o impulso à renovação e adaptação o Concílio Vaticano II?
- Não compreendeu a Concordata quem a considere envelhecida, e portanto, carecida de revisão, se não de rejeição.
Pelo contrário, é documento nascido de reflexão «séria e de boa-fé» da natureza e missão respetiva da Igreja e do Estado, e da realidade histórica e permanente do País, e portanto vivo e atual. E acrescentarei sem hesitação: é um documento precursor e inovador, que se antecipou ao próprio Concílio. Ajusta-se tão perfeitamente às normas dadas por este, que, se lhe não fora anterior, todos diriam as copiaram. É a primeira Concordata de separação.
Não quero exagerar. Citarei o que escreveu acerca da Concordata o filósofo J. Maritain, em 1942, num livro que tem por título Les Droits de l’homme, em nota à pág.43: ela «mostrou o caminho e iluminou os espíritos na confusão do tempo presente». Para quem pense que a Concordata nasceu do espirito autoritário do regime político, aditarei que o mesmo escritor, no mesmo lugar, afirma a sua oposição ao regime.
Do que a Concordata representa para Portugal, é o documento mais alto e mais autorizado – o dos ilustres Docentes das nossas duas Faculdades de Direito, homens de saber e homens públicos, ao celebrar-se o seu 30.ºaniversário. Ela veio «sanar graves feridas abertas na consciência nacional e tornar juridicamente possível a paz religiosa em Portugal». Graças a ela, «a Igreja e o Estado salvaram a sua recíproca independência e ao mesmo tempo firmaram as bases da colaboração indispensável nos domínios em que a ambos cumpre concorrer para o bem comum».
Aliás a Concordata traz consigo o meio de reajustamento a condições novas, não para se negar a si mesma no que constitui a sua essência, mas para melhor realizar esta. É a letra bem entendida do art.º 30 - «Se vier a surgir qualquer dúvida na interpretação desta Concordata, a Santa Sé e o Governo Português procurarão de comum acordo uma solução amigável».
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- Acaba Vossa Eminência de falar da novidade da Concordata e, ao mesmo tempo, por um lado, do seu enraizamento na doutrina do Estado e da Igreja, e, por outro, da realidade histórica da Nação. Poderia dar-nos as suas características essenciais?
- Creio poder resumi-las no que se segue:
a) Os dois Poderes – Estado e Igreja – reconhecem-se e aceitam-se mutuamente tais quais são, definindo os limites da sua respetiva independência e os termos precisos do seu encontro ao serviço do cidadão súbdito dos dois. Nem primazia do poder civil (como se dizia no tempo do liberalismo) numa Igreja de Estado; nem clericalização da política;
b) A Concordata não reintegra a Igreja, como acaba de ser dito, como Igreja de Estado, na sua participação como tal na vida pública, nas honras e privilégios de corpo de Estado, na dotação material, na proteção, em vez do Rei como padroeiro; aceita franca e lealmente a separação;
c) A Concordata não restaura o chamado orçamento de culto; a Igreja em Portugal vive exclusivamente das esmolas dos fiéis, é até a única (com a França) em toda a Europa, incluindo as nações além da cortina de ferro. Para conquistar a liberdade e a dignidade, a Igreja portuguesa – oiça-o bem Portugal – aceitou ser a Igreja mais pobre da Europa. Não se iluda ninguém, a floração de casas e institutos religiosos que se contempla no nosso País deve-se apenas a ajudas generosas, sinal da sobrevivência da fé e da restauração do que fora destruído em 1834 pelo regime liberal, e, depois, em 1911, com o advento da República. Mas a perspetiva da situação material da Igreja hierárquica (refiro-me a dioceses e paróquias com o seu clero) é cheia de preocupações. E não lhe faltariam motivos para pedir ao Estado, em nome do bem comum da Nação, isto é, da continuidade do espirito que a formou e sustenta, que lhe venha em auxílio, como às suas igrejas fazem os países cristãos (não digo só católicos), ele que tão louvavelmente vai em socorro das dioceses e missões do Ultramar;
d) A Concordata reintegra o País na sua fonte espiritual, «sem que algum cidadão português, qualquer que seja a religião que professe, sofra a menor diminuição dos seus direitos». No discurso já citado, Salazar começou assim sobre o ponto que nos importa: «A primeira realidade que o Estado tem diante de si é a formação católica do povo português: a segunda é que a essência desta formação se traduz numa constante da história». E a concluir: «sem deixarmos de sermos do nosso tempo…,somos nos altos domínios da espiritualidade os mesmos de há oito séculos»:
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4 – A Concordata e a liberdade
- Diz-se, às vezes, que a Concordata cria uma situação privilegiada em relação às outras confissões religiosas. O próprio Projeto sobre a Liberdade Religiosa consagra o fato. Não se oporá isto à igualdade de todos os cidadãos perante a lei?
- A situação criada pela Concordata para a Igreja não é, em rigor, privilégio, é antes reconhecimento de situações diferentes. Portugal nasceu, formou-se e vive ainda, na sua quase totalidade, no seio da Igreja. É uma realidade histórica e moral. Fato ainda sociológico que o Estado não pode esquecer: aqui igualdade seria falsidade, injustiça e traição ao bem comum.
A situação da Igreja, segunda a Concordata, não nega, antes proclama – e disse-o há pouco o Episcopado da Metrópole em solene Pastoral – a obrigação de assegurar a todas as religiões os respetivos direitos, o que não quer dizer que sejam os mesmos. O Concílio, na Declaração sobre a Liberdade Religiosa, teve o cuidado de precisar: direitos «segundo o modo próprio de cada uma delas e conforme as suas obrigações para com o bem comum» (nr.6). E, mais adiante, o Concílio refere-se explicitamente ao caso de um regime especial. Cito as palavras: «se, atendendo a circunstancias particulares dos povos, uma comunidade religiosa é especialmente reconhecida na ordenação jurídica da sociedade». É o caso português consagrado na Concordata.
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5 – Autonomia e Cooperação
- Compreende-se a independência mútua do Estado e da Igreja, poderes um temporal e outro espiritual. Todo o mundo livre hoje o reconhece. Mas reconciliar-se-á a cooperação com o princípio da separação? Não haverá o perigo de uma certa oficialização?
- Primeiro: o Estado não pode desinteressar-se do bem comum, e a vida moral e espiritual são componentes essenciais dele, ou antes, aquilo que dá o sentido e o valor e o fim. Repito a frase de Salazar: «o Estado tem diante de si, como a primeira realidade, a formação católica do povo português». E, se quiser manifestar religiosamente os seus sentimentos, não terá outra linguagem senão a católica, como a França, para exprimir as últimas homenagens a De Gaulle.
Segundo: o Estado e a Igreja encontram-se ambos ao serviço dos mesmos homens, especialmente na educação da juventude e na constituição da família. Vai o Estado contrariar aquela primeira realidade? É voltar à negregada e impossível Lei de Separação. Vai ficar neutro e indiferente perante ela? É abandonar o homem no que lhe é mais essencial à sua educação e seu destino, enfraquecendo a alma da Nação.
O princípio da separação não significa nem hostilidade nem indiferença. A cooperação significa entendimento sincero e confiante do Estado e da Igreja no campo em que se encontram juntos ao serviço dos mesmos súbditos, porém sem confusão de funções. Entendem-se, mas não se substituem.
Autonomia e cooperação: eis as duas grandes coordenadas da relação Igreja-Estado, e, de modos e graus diversos, existentes nos fatos e nas intenções dos países europeus de tradição católica. São preceitos da consciência nacional e clara orientação do Concílio. Vale a pena citá-lo: «No terreno que lhes é próprio, a comunidade política e a Igreja são independentes e autónomas. Mas ambas, embora a títulos diferentes, estão ao serviço da vocação pessoal e social dos mesmos homens. Exercerão tanto mais eficazmente este serviço para bem de todos, quanto mais cultivarem entre si uma sã cooperação, tendo em conta as circunstâncias de lugar e de tempo.
Com efeito, o homem não está confinado somente á ordem temporal, mas, vivendo na história humana, guarda inteiramente a sua vocação eterna» (Const. Pastoral sobre a Igreja, n.76).
Mais explícito, no Decreto sobre a Liberdade Religiosa, n.6, o Concílio dirá: compete ao Estado «assumir eficazmente a proteção da liberdade religiosa de todos os cidadãos a proporcionar condições favoráveis ao desenvolvimento da vida religiosa».
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6 – Privilégios da Igreja?
- O sentido da cooperação de que Vossa Eminência acaba de falar justifica especial posição do Estado em relação à Igreja, sem diminuição ou negação do que é devido às diferentes comunidades religiosas. Mas parecem repugnar ao espírito do nosso tempo os privilégios concedidos à Igreja…
- Não tem apego aos privilégios a Igreja de hoje, e até declara, no passo, invocado acima, do Concílio, que «não coloca a sua esperança em privilégios dados pela autoridade civil», e de boa vontade renunciará a eles se põem em dúvida a sinceridade do seu testemunho, ou se novas condições de vida o exigem.
Mas dói muito à Igreja que se venha falar dos seus privilégios, depois das duas espoliações que sofreu no espaço de um século e sobretudo do heróico exemplo, de que é testemunha a Concordata, da aceitação leal da separação, e da renúncia à assistência material do Estado (exemplo único na Europa, salvo a França). Lembre-se o que se disse no Parecer da Câmara Corporativa das Sessões de 1940, n.88, 23 de Maio): «Neste domínio não é de admirar a generosidade do Estado, mas antes o alto espírito de renúncia que, por parte da Igreja, a Concordata revela». E não se esqueça que bem parca é a compensação de isenções (que em si próprias tinham justificação). Dói ainda à Igreja que, em vez de se apontarem os seus supostos privilégios, se não lhe faça a justiça que merece pelo serviço sem preço da sua obra de formação moral do povo português.
Privilégios ou serviços? Privilégios, não; são antes serviços religiosos ou educativos da Igreja, reconhecidos, facultados ou garantidos pelo Estado, na missão deste de assegurar a liberdade, a ordem e o bem comum, atenta a realidade católica portuguesa. O Estado não os oficializa, não os torna serviços oficiais, não obriga as consciências, não sai da sua natureza profana, secular. Numa palavra, o Estado coopera, não se clericaliza.
E, pelo que diz respeito às isenções, o caso refere-se aos estabelecimentos de formação eclesiástica; quanto às igrejas, nunca elas foram tributadas. Trata-se aqui do caso daquela mesquinha compensação já referida. Não seria antes o caso de reclamar que o Estado os subsidiasse substancialmente, como estabelecimentos quase gratuitos de promoção cultural e social de grande parte da juventude portuguesa? Não se sabe que é insignificante o número dos que chegam a ordenar-se? Não têm eles dado ao País alguns dos seus homens mais ilustres, que o Estado se esqueceria de descobrir?
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7 – Explicação de Alguns Casos
- Todavia, apontam-se concretamente alguns casos, que mereceriam talvez explicação. Por exemplo: considerar como crime público a injúria ou a ofensa ao ministro religioso no exercício do seu ministério, punindo-as com as penas aplicadas aos crimes contra as autoridades públicas; e, semelhantemente, a punição de uso indevido do hábito religioso ou eclesiástico; a graduação dos capelães militares em oficiais; e o ensino obrigatório da religião e moral católica nas escolas oficiais.
- Não se vê em que a equiparação aludida de penas possa ofender a consciência laica; é apenas equitativo sinal de respeito pelo culto religioso duma autoridade que a Concordata foi buscar ao art.º 12.º da Lei da Separação. Deriva do dever do Estado de garantir a liberdade religiosa.
Quanto à graduação em oficiais dos capelães militares, deve explicar-se que representa apenas o modo digno e eficaz da sua presença junto das forças armadas. Não lhe são atribuídas funções militares. A sua missão é, e continua a ser, puramente religiosa e moral.
Mereceu ao Concílio especial atenção a «assistência espiritual aos soldados». Ela, proclama ele, «exige um grande cuidado, devido ás suas condições especiais de vida», e «os capelães devem consagrar-se inteiramente a esta difícil tarefa». Para que ela fique sempre sujeita aos seus Bispos, reclama o Concílio: «exija-se…um vicariato castrense em cada nação». (Decr. Munus Past. Dos Bispos, n 43).
Sobre o ensino religioso nas escolas oficiais, é falso que ele seja obrigatório. O regime atual já prevê que dele seja dispensado aquele cujo encarregado de educação o requerer.
O que precede demonstra que ele não poderia deixar de figurar na nossa educação escolar. E a lição dos outros países de tradição católica no-lo ensinaria. A última a chegar, impedida pelo laicismo, foi a França.
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8 – A Indissolubilidade do Casamento Canónico
- O último problema levantado pela Concordata, e contra o qual se tem lido e ouvido contestação, é o relativo à indissolubilidade do casamento canónico…
- Efetivamente é até só contra ele, isto é, contra a incapacidade dos casados na Igreja Católica de se divorciarem, que têm chegado até mim várias reclamações.
Distingamos, segundo o preceito escolástico, para melhor esclarecer o problema. O casamento católico e o casamento civil são igualmente reconhecidos pelo Estado, mas este não altera a natureza e consequências de cada um.
O casamento civil, regulado pelo Estado, admite o divórcio; o casamento católico, elevado por Cristo à dignidade do sacramento, não o admite, é indissolúvel. Encontramos aqui, mais uma vez no aspeto civil, a desigualdade da lei para situações essencialmente desiguais. O impedimento do divórcio para casamentos canónicos é consequência do reconhecimento pelo Estado do casamento-sacramento como ele é – reconhecimento aliás imposto pela consciência católica da Nação, verificada através das estatísticas. Não é ofendida a liberdade individual: a forma do casamento não lhes é imposta por lei, é da livre escolha de cada um. Mas, escolhendo o casamento canónico, o nubente escolhe a indissolubilidade; e, se conscientemente fizesse reserva a esta escolha, o casamento ficaria nulo.
Citarei a propósito as lúcidas palavras do P. António Leite, no seu precioso livro O Projeto de Código Civil à Luz da doutrina católica, pág.109: «Não ignoro, nem a Igreja ignora, as tristes situações que se originam em lares desfeitos. O divórcio, porém, não as soluciona. Antes, especialmente nos católicos, vem a criar outras tragédias de consciência gravíssimas e quase insolúveis, além de todos os demais inconvenientes do divórcio».
Julgo poder revelar sem inconveniente o seguinte. Nas sondagens que precederam as negociações para a Concordata, teria sido afirmado não serem de prever dificuldades insuperáveis a um acordo; haveria porém dois pontos de que a Santa Fé fazia questão essencial: a educação cristã da juventude e o reconhecimento do caráter sagrado do casamento.

